sábado, 10 de abril de 2010

Jogo de cena e hipocrisia com os fichas sujas

Editorial certeiro da Folha de S.Paulo:

Publicação: 10.04.2010
Numa decisão já amplamente esperada, a Câmara dos Deputados adiou a votação do chamado projeto dos "fichas sujas", que impediria, já nas próximas eleições, a candidatura de políticos condenados em segunda instância na Justiça.

Encaminhado ao Legislativo pelo mecanismo da iniciativa popular, o projeto de lei conta com cerca de 1,6 milhão de assinaturas em seu favor.

Pode-se estimar que seja bem maior o número dos cidadãos que, inconformados com a espiral de escândalos no sistema político brasileiro, gostariam de vê-lo aprovado com rapidez.

O pedido para que o projeto fosse votado em regime de urgência não teve, entretanto, apoio entre as lideranças dos partidos governistas (PT, PMDB, PR, PTB e PP). Retorna, assim, às retortas da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), das quais, depois de analisadas as novas emendas que recebeu, só deverá sair em maio.

Esta é a promessa do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP), que, na qualidade de provável candidato a vice de Dilma Rousseff na sucessão presidencial, tem muito a perder se for identificado como principal responsável pelo engavetamento do projeto de lei.

O jogo das aparências não se restringe, todavia, ao bloco situacionista na Câmara dos Deputados. Partidos de oposição, como PSDB, DEM, PPS, PDT e PV, adotam a bandeira da "ficha limpa", e não faltam líderes a denunciar a manobra protelatória dos governistas. Uns e outros não desconhecem, todavia, o quanto a ideia tem de duvidoso no aspecto jurídico, e de remoto no que diz a respeito à sua viabilidade prática.

Ainda que falar em "presunção de inocência" pareça ridículo - pelo menos no caso de alguns políticos notórios pela depredação do patrimônio público -, é extremamente grave a ideia de cassar os direitos de um cidadão que ainda não foi condenado em definitivo na Justiça.

O que aconteceria se, impedido de candidatar-se, determinado político se visse posteriormente absolvido de suas acusações por um tribunal superior? E qual a validade, afinal, de um recurso de defesa constitucionalmente legítimo, quando a pena já se aplica de antemão?

De resto, nada impediria os partidos atualmente empenhados no projeto de aplicarem, desde já, o princípio da "ficha limpa", retirando qualquer candidato já condenado de suas listas de votação. Está para ser provada, contudo, a presença de tamanho rigor seletivo na vida interna das agremiações que agora reclamam da manobra protelatória.

Por difícil que seja admitir, o fato é que nenhuma lei fará o eleitor votar nos "nomes certos" para um cargo eletivo. Fundamental é que os cidadãos possam ter amplo acesso à biografia, às propostas - e às "fichas" - dos candidatos. Que a decisão do eleitor se faça com o máximo de informação possível -mas sem atalhos que venham a ferir tanto a sua soberania decisória quanto princípios básicos da ordem constitucional.